A escravidão não teve início no mundo quando as embarcações portuguesas chegaram à costa da África, no século XV. O fenômeno sociológico pode ser identificado a partir de um recuo, ainda maior, no tempo. Em torno de 3.500 a.C., a Mesopotâmia – região que hoje corresponde, na sua quase totalidade, ao Iraque – já registrava a prática do cativeiro. Também na Antiguidade, egípcios, gregos e romanos adotaram o sistema de servidão. Após o advento do Cristo, o modelo escravocrata continuou no reino dos césares até o esfacelamento do império, em 476; cerca de 150 anos depois, no século VII, consolidou-se nos domínios islâmicos, sob a égide do califado. Nesse período, não deixou de figurar no Velho Continente e, mesmo com o fim da Idade Média, em 1453, não desapareceu da mentalidade europeia. Pelo contrário, ganhou proporções inimagináveis.
Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael Sanzio, nas artes; Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Johannes Kepler, nas investigações astronômicas; Erasmo de Roterdã, Martinho Lutero e Tomás de Aquino, na teologia, trouxeram o sopro da Renascença para os reinos europeus. Ao lado de muitos outros gênios, revitalizaram a cultura, antes imersa no obscurantismo do período medieval. Deram à humanidade os feitos da beleza, “recolocaram” o astro-rei no centro do Sistema Solar e tentaram resgatar a singeleza do Sermão do Monte.
As navegações ultramarinas foram o símbolo dessa primavera. Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, Pedro Álvares Cabral e Fernão de Magalhães interligariam o mundo. Os avanços da engenharia náutica eram a demonstração do poder da inteligência humana. O que se seguiria: liberdade, fartura alimentar, cruzamento de saberes? Potencial para tanto havia. A América nascente, aos olhos do civilizador, estava ali — frondosa, exótica, diversa, fecunda e virginal. No entanto, os conquistadores não vinham em missão de paz, como bem haviam demonstrado no litoral de Angola, décadas antes de Colombo chegar às Antilhas e das caravelas lusitanas atracarem em Santa Cruz de Cabrália (BA). A visão áurea do Renascentismo não foi capaz de impedir a barbárie.
A captura ostensiva de africanos lançou os alicerces da escravidão global e evidenciou as marcas do racismo: a subjugação do homem pelo homem passou a ter como base a cor da pele. Durante 350 anos, as principais metrópoles da Europa tiveram como sustentáculo econômico o regime brutal de servidão nas colônias americanas. De acordo com o livro-reportagem “Escravidão”, do jornalista Laurentino Gomes, 12,5 milhões de consciências foram arrancadas de suas terras, entre os séculos XV e XIX, para os trabalhos forçados em lavouras, engenhos, jazidas e onde mais o interesse alheio precisasse. Desse total, 40% — cerca de 5 milhões de vidas — desembarcaram no território brasileiro. Hoje, o país abriga a segunda maior população negra do planeta, atrás apenas da Nigéria.
Sem perder esse contexto histórico de vista, o Brasil Cultural apresenta o segundo episódio sobre a Revolta dos Malês e deixa uma reflexão, em forma de poesia, aos leitores e ouvintes. Depois de ler, é só dar o play.
Por que os valores do Ocidente,
No transcurso de 350 anos,
Obliteraram-se em frente a
Reis, príncipes e tiranos?
Onde estava o Direito,
Forjado pela romanidade,
Quando levados a efeito
O cativeiro e a iniquidade?
Onde a bela Filosofia,
O ideal do mundo grego,
Quando, no Atlântico, sofria
A mente e a carne do negro?
E os sermões em latim,
O Novo Testamento,
Quando comprados em Benim
Tantos seres em sofrimento?
Decerto, longe dos sepulcros.
Também estranhos à injustiça,
Afeita aos infinitos lucros,
Cujo móvel é a cobiça.
De que forma se inaugura
Outra Era, depois da já escrita?
Há respostas na cultura,
Diz-nos Antônio Vieira, o jesuíta:
“O Brasil tem seu corpo na América
E sua alma na África.”
Crônica e poema – Ricardo Walter